terça-feira, 20 de março de 2012

HERÁCLITO DE ÉFESO

Heráclito era originário de Éfeso, cidade da Jônia. A sua família tinha raízes aristocratas, pois descendia do fundador da cidade. O pensador era dono de um caráter altivo, bem como de traços missantrópicos. Essas características misturavam-se, nele, com um temperamento melancólico. Menosprezava a plebe. Fazia questão de não intervir em política. E tinha uma posição de crítica azeda contra os antigos poetas, bem como em face dos filósofos da sua época. Era crítico do fanatismo religioso. Escreveu um livro Sobre a Natureza, em dialeto jônico e em prosa. O seu auge como pensador deu-se entre os anos 504-500 a. C.

Heráclito foi, tradicionalmente, apresentado como o “filósofo do devir”. Mas não seria exato dizer que esse conceito é o único que prevalece no seu pensamento. Encontramos, nele, certamente, a imagem do rio, como no seguinte trecho: “São águas sempre novas as que correm no mesmo rio e outros os que flutuam sobre elas”. Mas, se encontramos aqui a idéia de devir, de movimento, encontramos também a idéia de permanência. É no seio do mesmo rio por onde correm as águas sempre novas. Essa idéia de permanência aparece, também, neste texto que se refere ao sol: “O sol é novo cada dia, mas ele não ultrapassa as medidas que lhe são próprias. Se não fosse assim, as Erínias, guardiãs da Justiça, o saberiam encontrar”. Achamos idéia semelhante neste outro texto: “O fogo se converte em mar e uma metade do mar vira terra, enquanto a outra se converte em nuvem ardente. No entanto, o mar não cessa de provir do mesmo Logos, a partir do qual ele se originou, antes mesmo de que nascesse a terra” [1].

Existe, pois, no pensamento de Heráclito, permanência sob o movimento das coisas. Essa relação entre permanência e movimento é ilustrada por Heráclito com a imagem do combate. Nada pode chegar a ser, senão mediante uma luta entre contrários. A respeito, frisa Heráclito: “Deus é o dia e a noite, o inverno e o verão, a guerra e a paz, a abundância e a carência; ele se converte em outro como o fogo misturado aos aromas, ele é chamado como melhor agradar a cada um”. O combate, polemos (pólemos) tudo permeia. É o que o filósofo afirma no seguinte texto: “O combate é pai de tudo, rei de tudo. É ele que faz com que uns pareçam deuses, outros homens, outros escravos, outros livres”. O combate, para Heráclito, é a unidade dos contrários. O pensador exprime essa idéia acudindo às imagens do arco e da flecha, e das cordas da lira: é graças à sua tensão que é produzido o som. O combate é também harmonia, mas não estática, mas dinâmica, entendida como tensão entre o movimento e o repouso. (Anotemos, de passagem, que a imagem da tensão das cordas da lira serviu de inspiração, na Cosmologia contemporânea, à Teoria das Cordas).

Heráclito considera que é necessária a crítica aos sentidos, por parte da razão, que é participação do Logos (Logos). Isso significa que eles podem errar ao estarem vinculados aos aspectos contraditórios do real, sem perceberem a unidade que há na discórdia. O fruto da discórdia e da composição entre contrários é a unidade. Heráclito dá um nome paradoxal à mesma: polemos xunon (pólemos xynon). Este xunon (xynon) não é a harmonia platônica, nem a idéia que paira acima da diversidade. Xunon (xynon) é aquilo que congrega, de forma semelhante a como a lei reúne os cidadãos da polis. E essa lei unificadora se alimenta do Único que é o Logos (Logos), ou seja, ela é eclosão, unidade conseguida através de oposições entre as diferenças. Zeus é o combate, o pai, o rei; ele, por outra parte, é também o fogo, aquele que vive sem cessar, aquele que se ilumina em todas as suas dimensões, aquele que se estende segundo as medidas, ele é o nexo e o lugar de encontro dos contrários.

Estas idéias subjazem à frase paradoxal de Heráclito: “A natureza gosta de se esconder”, que tantas repercussões terá ao longo da História da Filosofia Ocidental, no meio helenístico (entre epicuristas e estóicos) e, posteriormente, no pensamento renascentista e nas filosofias empiristas, notadamente no seio da meditação anglo-saxã. A natureza é eclosão sem-fim à qual ninguém pode se furtar. Ela é o desvelamento mesmo. A natureza faz vir as coisas à tona, ela as deixa se manifestar mas, ao mesmo tempo e de forma paradoxal, ela nos rouba a unidade do lar da presença no qual se dá essa manifestação. Destarte, a eclosão das coisas, a sua vinda ao espaço da manifestação é, ao mesmo tempo, dissimulação da presença radical que as sustenta.
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[1] Para os textos citados aqui, bem como para a linha de raciocínio que seguimos, temos nos baseado na obra de Jean LADRIÉRE, Elements de Critique des Sciences et de Cosmologie – Année académique 1966-1967. Louvain: Université Catholique, 1967 (mimeo.).

2 comentários:

  1. Estudando os fragmentos de Heráclito e sua doxografia, deparei-me com certas contradições (com o perdão do trocadilho por se tratar do filósofo das contradições) que estão me dificultando na compreensão de suas palavras. Tais contradições provavelmente são provenientes de minha dificuldade de interpretação. Tentarei expô-las aqui. A primeira dúvida possui uma relação com a Teoria do Conhecimento. Heráclito foi, de acordo com sua biografia, cheio de desprezo pelos outros, por seus contemporâneos filósofos, sábios e poetas, tendo uma especial antipatia para com seus conterrâneos efésios. Eis um trecho do fragmento 121 para corroborar tal afirmação: “Merecia que os efésios adultos se enforcassem [...]”. (Dentre outros fragmentos; para não me demorar muito, citarei poucas passagens). Conclui-se daí que Heráclito não via uma sabedoria na maioria, na massa, no povo, pois ele mesmo desprezava a plebe, tendo escrito seu livro Sobre a Natureza de maneira obscura e enigmática justamente para que aqueles seus concidadãos, os comuns, não o compreendessem (pois esses pensavam compreender quando no fundo nada compreendiam). Tendo isto em mente, analisemos o seguinte fragmento: “Este Logos, os homens, antes ou depois de o haverem ouvido, jamais o compreendem. Ainda que tudo aconteça conforme o Logos, parece não terem experiência experimentando-se em tais palavras e obras, como eu as exponho, distinguindo e explicando a natureza de cada coisa. Os outros homens ignoram o que fazem em estado de vigília, assim como esquecem o que fazem durante o sono”. (Frag. 1). A partir deste fragmento, fica difícil agora entender o fragmento de número 2, a saber: “Por isso, é necessário seguir o comum; mas, se bem que o Logos seja o comum , a maioria vive como se tivesse uma inteligência particular”. (Frag. 2). De acordo com o tradutor José Cavalcante de Souza, este “comum”, ou “o-que-é-com”, seria no grego xynós, sinônimo de koinós = comum, que é uma forma a se aproximar de axynetoi. Axynetoi seria, por sua vez, “que-não-se-lançam-com”, “que não compreendem”. Bom,a ambiguidade consiste no seguinte: está Heráclito agora afirmando que o verdadeiro conhecimento está naquilo que é comum? Está ele dizendo que quando particularizamos o conhecimento caímos em erro? Mas não é justamente o oposto daquilo que afirmara antes? Ora, se o que é digno de confiança é apenas aquilo que se manifesta em comum, ele não teria motivo para desprezar a maioria, e muito menos os sábios e os filósofos. Logo, esta não seria uma interpretação correta dos fragmentos. Qual então seria a correta interpretação? Pelo que se entende, Heráclito postula ser o Logos a razão divina universal, pela qual todos os homens devem se guiar para chegarem à verdade (alétheia), sendo que todos os homens possuem essa capacidade. Qual seria então o sentido de “comum” e “inteligência particular” nos fragmentos anteriores?
    A outra dúvida já não diz tanto respeito à Teoria do Conhecimento, mas sim a outra ambiguidade em seus fragmentos. Heráclito afirma que se deve ouvir a voz do Logos e não à de alguém em particular, mesmo a dele, como atesta o seguinte fragmento: “É sábio que os que ouviram, não a mim, mas as minhas palavras (logos), reconheçam que todas as coisas são um”. (Frag. 50). No entanto, parece se contradizer aqui: “Lei é também persuadir-se à vontade de um só.” (Frag. 33). Poderia argumentar aqui que o filósofo está apenas constatando uma característica do que ele entende por lei, e não necessariamente fazendo um elogio à mesma. Porém, este argumento se mostraria falso diante do seguinte fragmento: “É preciso que lute o povo pela lei, tal como pelas muralhas.” (Frag. 44). Mais uma contradição?
    Bom, pedindo desculpa de antemão pela demorada dúvida, espero que o professor Ricardo Vélez possa ajudar-nos esclarecer um pouco as palavras deste pensador extremamente obscuro e de difícil interpretação (pelo menos pra mim). Convido também os colegas ao debate!

    Daniel Guilhermino (1º Período)

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  2. Daniel Guilhermino, Muito pertinentes as tuas questões. Em primeiro lugar, quanto ao desprezo do filósofo pela plebe: a meu ver, o que Heráclito pretende é que os homens superem o estado de conformidade com a opinião recebida por tradição e passem a elaborar outro consenso alicerçado no exercício da razão. Em segundo lugar, quanto à característica da verdade: Heráclito, a meu ver, deixa claro que a verdade tem duas dimensões, pessoal (individual) e social. Quanto à primeira, ela é fruto da reflexão; quanto à segunda, ela depende tanto da reflexão individual, quanto do consenso entre os homens que fazem uso da razão. Seria uma espécie de "verdade por consenso dos que exercitam a razão". Não estaria longe o filósofo dos hodiernos filósofos da ciência (Popper, por exemplo), que destacam o caráter consensual das verdades científicas, levando em consideração que esse consenso se dá entre os que exercitam a razão no conhecimento dos fenômenos. Em terceiro lugar, quanto ao comportamento, acho que Heráclito antecipa o que Aristóteles definia como "virtudes éticas" (aquelas aceitas por tradição e que constituem o consenso da polis).

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